MENTIRA E VERDADE: A APLICAÇÃO PRÁTICA NOS RELACIONAMENTOS

Por Clayton de Souza



INTRODUÇÃO


Definir a mentira como o oposto da verdade, sem considerar uma imensa gama de fatores que orbitam a questão é mais do que tratar do assunto com simplicidade, mas é ser simplista com um assunto ao mesmo tempo tão comum e tão complexo.
Algumas perguntas são necessárias no desenvolvimento deste assunto: tudo o que chamamos de mentira realmente o é, ou seja, não dizer a verdade ou omiti-la sempre é considerada uma mentira? Em que situações a mentira pode ser considerada boa ou útil, se isso é possível? Por que as pessoas mentem? Por que parece às vezes, na cultura brasileira, mais fácil mentir do que dizer a verdade? E finalmente, o que a Bíblia diz com respeito à mentira? Há casos nas Escrituras de “Mentira branca”, ou seja, com o objetivo de fazer o bem? O que originou as recomendações de Paulo sobre a mentira na comunidade nas cartas aos Colossenses e aos Efésios?
Diante de tantas mentiras, Pilatos pronunciou a célebre pergunta: “que é a verdade?”. Hoje, diante de tantas “verdades”, proponho perguntar agora: e o que é a Mentira?

1.   Definindo o conceito.


Em um trabalho acadêmico, acredito que definições de dicionário são dispensáveis, mas para o bom estudo da ética neste campo, um bom ponto de partida para a compreensão do que é a mentira é a conclusão de Grenz:

“... (Mentir é) o ato de dizer Falsidade, ou de omitir a verdade com intenção de enganar. Nesse sentido, a verdade é um aspecto do caráter de Deus, e mentir é agir contra o caráter divino. A mentira também mina a veracidade das relações, e desse modo, a estrutura da comunidade. Embora contar a verdade seja quase universalmente reconhecido como um imperativo moral, os eticistas debatem as condições em que se abster de falar a verdade ou realmente contar uma mentira são ações consideradas o menor dos males.” (Grenz, p.112).

Na definição acima, observamos que a mentira é definida como uma violação da condição de “imagem e semelhança” e do compromisso de refletir a glória de Deus. Por esse motivo, o pecado da mentira é abominável, impede o relacionamento com o criador e por consequência com o seu próximo. Bonhoeffer define assim a problemática:

“Mentira, antes de tudo, é a negação de Deus, tal como se revelou ao mundo (1 João 2.22). (...) Mentira é a contestação da palavra de Deus como ele falou em Jesus Cristo e a qual repousa a criação. Consequentemente, mentira é a recusa, negação e destruição consciente e proposital da realidade como foi criada por Deus e nele subsiste, na medida em que isso acontece por palavras e por silêncio. Nossa palavra tem a função de, em harmonia com a palavra de Deus, expressar a realidade como ela é em Deus.”. (Bonhoeffer , p.205)

Por outro lado, somos lembrados por Grenz na mesma definição citada, que no estudo da ética, não podemos generalizar as qualificações em relação a esse assunto, pois podem existir elementos na equação relacional a ser consideradas. A psicanálise faz coro com estes eticistas, entendendo que na dinâmica psicológica dos relacionamentos não deveríamos qualificar tudo igualmente, mas considerar a intenção antes do ato como afirma Ballone:

“A mentira não deve ser entendida como uma espécie de contrário da verdade. Ética e moralmente a mentira está muito mais relacionada à intenção de enganar do que ao teor de deturpação da verdade e, juridicamente, a mentira está relacionada ao dolo ou prejuízo que causa a outra pessoa. (...) é o propósito com que falamos alguma coisa que definirá a mentira. Mentir seria dirigir a outro um enunciado falso, cujo mentiroso sabe conscientemente dessa falsidade, e o faz com objetivo de enganar, de levar esse outro a crer naquilo que é dito, dando a entender que diz a verdade”.

Semelhantemente, Bonhoeffer também se recusa a relacionar toda falta de verdade como mentira, mas sua abordagem é muito mais ancorada na preservação dos relacionamentos:

“Restringir o problema da veracidade da palavra a casos isolados de conflito é uma postura superficial. Afinal, cada palavra que falo está sob a determinação de ser verdadeira. Independente da veracidade de seu conteúdo, o relacionamento com outra pessoa que nela se expressa pode ser verdadeiro ou não. Posso lisonjear, posso ser arrogante, posso fingir sem expressar materialmente uma falsidade; mesmo assim minha palavra não é verdadeira, porque estou corrompendo e destruindo a realidade do relacionamento de marido e mulher ou de chefe e subordinado. A palavra isolada é sempre parte de um todo da realidade que quer manifestar-se através da fala. Dependendo de para quem eu falo, quem me perguntou, de que vou falar, minha palavra tem que ser diferente, se quiser corresponder à verdade. A palavra que corresponde à verdade não é uma grandeza constante em si, mas tão viva quanto a própria vida. Onde ela se desvincula da vida e do relacionamento com o próximo tal qual é, onde “se diz a verdade” sem considerar a quem fala, ela só tem aparência, mas não a essência da verdade.” (203). Bonhoeffer

É claro que isso não pode se transformar em uma boa maneira de relativizar a mentira. Nossa convicção do que é pecado não pode ser abrandada, mas ao mesmo tempo devemos ser honestos em entender o que isso realmente significa. Mesmo os mais conservadores podem compreender a dinâmica ética de separar o ato da intenção, como é o caso de Lowell Bailey:

“Mentir ao irmão é: contar a ele, como verdadeiro, aquilo que sabemos ser falso. É fazer distorção da verdade. É apresentar uma falsa imagem de nós mesmos ou de qualquer coisa, com o intuito de enganar.”. (121) Bailey

Mentir então é mais do que ocultar ou faltar com a verdade; é fazê-lo com a intenção de enganar ou de alguma outra forma prejudicar o próximo e/ou levar vantagem sobre ele. Mentir também é prejudicar o relacionamento com Deus, distorcendo a realidade relacional e entregando-lhe vitupério ao invés de glória.


2.   O uso da mentira segundo as alternativas éticas.


Como já vimos, tanto a ética quanto a teologia e até mesmo a psicologia podem concordar que a mentira é qualificada como tal não só pelo fato de distorcer ou ocultar a verdade, mas principalmente pela maneira e pelo objetivo de tal ação. Isso acontece por que diante de um dilema ético, é preciso decidir de acordo com critérios e alternativas disponíveis. Stelio Rega define esse dilema como “... uma situação de natureza ética embaraçosa com saídas difíceis ou prejudiciais.” (Rega, p. 93), e por isso precisamos conhecer tais alternativas para uma melhor compreensão do assunto.
Norman L. Geisler, em sua obra de referência sobre Ética Cristã, introduz sua explanação sobre as alternativas éticas com a história do Comandante Lloyd Bucher que, para salvar a vida de seus subordinados, mentiu sobre ser um espião em território norte-coreano. Para o julgamento da atitude de Bucher, Geisler apresenta as seguintes alternativas éticas:

i.     Mentir nessa situação não foi certo nem errado, pois na verdade não há nenhum padrão moral objetivo capaz de julgar tal atitude. Tal alternativa é conhecida como Antinomismo. Apesar de priorizar o relacionamento, tal abordagem segundo Geisler é demasiada subjetiva, individual, relativista e principalmente é uma “ética sem sentido”, pois “Se o oposto do “certo” não for o “errado”, então será impossível qualquer ética relevante.” (Geisler, p.37).
ii.    Geralmente mentir é errado, mas nesta situação especifica pode ser considerado certo, pois realizou um bem maior. Esta alternativa conhecida como Generalismo é utilitarista, pois apesar de enunciar que as regras são universais também admite exceções de acordo com a situação e com a intenção. Tal alternativa de simples mecanismo também é de aplicação simplista, pois depende da interpretação de valor que cada um aplica como quer.
iii.   Já no Situacionismo, a única regra universal é o amor, e nestes termos, a mentira pode ser justificada, pois como explica Geisler, “... o fim realmente justifica os meios, se os “meios” forem a norma do amor.” (Geisler, p.13). Apesar da aparente segurança de uma regra imutável e aplicável a diferentes situações, a posição situacionista generaliza e admite ambiguidades tanto no significado do amor quanto na sua aplicação.
iv.   Há também o Absolutismo Não Qualificado, que prega haver muitas normas que nunca entram em conflito de verdade, mas apenas aparentam. Para os defensores dessa alternativa, há sempre um caminho para não transgredir a regra. No caso de Bucher, não havia dilema moral, pois não seria ele quem mataria os tripulantes do seu navio e por isso, ele deveria cumprir com sua obrigação de dizer a verdade. Essa alternativa é claramente legalista e ignora as nuances dos relacionamentos.
v.    Uma maneira utilitária de lidar com o assunto é o Absolutismo Conflitante, em que a opção ética escolhida em determinada situação tem como critério o menor dos males que por este motivo é desculpável. Quando há muitas normas que acabam entrando em conflito em diversas situações, resta a nós assumir o risco da culpa e escolher bem para que a decisão faça valer a pena e mereça o perdão.
vi.   Finalmente, mentir pode até ser certo se falar a verdade entrar em conflito com normas éticas mais altas, isto é, se mentir é errado, deixar de salvar vidas podendo fazê-lo é ainda muito mais errado. Essa posição conhecida como Absolutismo Graduado ou Hierarquismo, prega uma ordem de valores éticos, uns mais altos que outros. Geisler explica que “No Hierarquismo, porém, a pessoa não é culpada por quebrar uma norma inferior mas, sim, tem isenção dela tendo em vista o dever sobrepujante a uma norma superior”.  Nesta opção ética, a escolha é baseada na premissa de que existem normas superiores a outras (e por isso, não conflitantes) porque existem valores maiores que outros e assim, distorcer ou ocultar a verdade para salvar muitas vidas (ou até mesmo uma) pode não ser considerada uma mentira.
Bonhoeffer apresenta uma alternativa que se assemelha ao hierarquismo, mas que no seu exemplo apresentado, o valor que define a ordem de importância das normas é mais relacional do que moral. No caso por ele apresentado, amar e proteger a honra da família é superior ao falar a verdade:

“Um exemplo: um professor pergunta a uma criança, diante da classe, se é verdade que seu pai frequentemente volta embriagado para casa. De fato, é assim, mas a criança nega-o. a pergunta do professor colocou-a numa situação que ela ainda não tem condições de enfrentar. Sente, apenas, que aqui aconteceu uma ingerência indevida na ordem da família que ela deve rechaçar. O que se passa na família não é da conta da classe. A família tem seu mistério próprio que deve preservar. O professor desrespeitou a realidade dessa ordem. (...) Podemos qualificar a resposta da criança como mentira; mesmo assim, essa mentira contém mais verdade, isto é, ela corresponde mais á realidade do que se a criança tivesse revelado a fraqueza do pai à classe.”. (Bonhoeffer , p.204).

Estudando essas alternativas, podemos verificar que na maioria delas, ocultar ou faltar com a verdade pode ser o único escape diante de um dilema ético, e isso não entra em conflito com o ensinamento bíblico, como veremos a seguir.


3.   A mentira e a Bíblia.


Apesar de Êxodo 20.16 ser um ponto de partida óbvio, gostaria de começar com a revelação mais completa do Novo Testamento, não só porque contém a interpretação cristológica e cristocêntrica da Lei (que já seria o bastante), mas porque também traz acrescido o componente relacional da igreja.

“Não mintam uns aos outros, visto que vocês já se despiram do velho homem com suas práticas e se revestiram do novo, o qual está sendo renovado em conhecimento, à imagem de seu Criador” (Cl 3.9-10).
“Portanto, cada um de vocês deve abandonar a mentira e falar a verdade ao seu próximo, pois todos somos membros de um mesmo corpo” (Ef 4.25).

No caso especifico das recomendações de Paulo às igrejas em Colossos e Éfeso, não somente pela proximidade geográfica, cultural e histórica, ou porque Paulo as escreve provavelmente na mesma época e circunstância, mas principalmente porque trata de assuntos semelhantes, podemos examina-las e comenta-las em bloco.
Diante da ameaça do sincretismo religioso e do gnosticismo que propunha uma dicotomia entre o espiritual e o material, Paulo chama a atenção às igrejas que uma nova vida implica em abandonar a velha vida egoísta através da transformação do caráter e da mudança dos valores, refletida no comportamento e nos relacionamentos (verdade e honestidade). A adoração é refletida no cotidiano e esse novo caráter é o de Cristo implantado em nós pelo Espírito Santo. Por isso, Paulo insiste no contraste entre o valor negativo da mentira e o positivo da verdade como explica Foulkes ao comentar Ef 4.25:

“... despojamento da velha vida caracterizada pela ignorância, vaidade e engano, bem como impureza e concupiscência. Em seu lugar deve ser colocado o novo homem, que significa um novo modo de viver caracterizado pela retidão e justiça. (...) Para reforçar seu argumento contra a falsidade, Paulo apela não apenas para a lei moral que seus leitores conheciam tão bem. Ele insiste também em afirmar que os cristãos estão rompendo os laços de amor e comunhão a que foram trazidos, quando tentam enganar uns aos outros,” (Foulkes, p.109 e 110).

O Novo Comentário da Bíblia, ao tratar do mesmo texto afirma que “A Mentira, tem um sentido mais amplo, não se limitando ao que se diz.” (Davidson, p.1262). Podemos concluir então que a recomendação paulina não se limita em legislar contra a distorção ou omissão da verdade na comunicação, mas no modo de vida e na maneira como nos relacionamos com os outros, fazendo assim côro com Êxodo 20.16 sobre não mentir “... contra o teu próximo” (RA, RC e NVI) ou “... contra ninguém” (NTLH).

O ensino geral das Escrituras deixa claro o agravo da mentira como corruptora dos relacionamentos com Deus e com o próximo. Bailey afirma que ao que parece, “... Deus se sente especialmente ofendido pelo pecado da mentira (porque) Ele é, por natureza, totalmente verdadeiro, sendo, também, a fonte de toda a verdade” (Bailey, p.123).  A prática da mentira é descrita como abominação ao Senhor (Pv. 6.16-17; 12.22), porque fomos criados e somos resgatados do pecado para refletir seu caráter e sua natureza (Rm 8.29). Por esse motivo,

“O mandamento: Não mintam uns aos outros, é apresentado em Cl 3.9-10 dentro de um contexto que fala do novo, o qual está sendo renovado em conhecimento, à imagem do seu Criador (v.10). Se quisermos refletir exclusivamente a imagem dAquele que nos fez nova criação (2 Co 5.17), é claro que teremos de fazer o que Paulo manda em Ef 4.25” (Bailey, p.123).

Porém, alguns episódios descritos nas Escrituras são emblemáticos, pois parecem numa leitura superficial contradizer o ensino bíblico contra a mentira. Selecionei três destes relatos que o meu ver, parecem ser exemplos de opção pela “mentira” diante de um dilema ético no relato bíblico:

i.              As parteiras Hebreias – Êxodo 1.15-20.
Diante da ordem do Faraó de matar todos os bebês hebreus do sexo masculino, Sifrá e Puá optaram por desobedece-lo. Quando questionadas, diante da possibilidade de sofrerem castigo e possivelmente a morte, aquelas mulheres mentiram. O problema da narrativa é que, além de não haver qualquer sinal de reprimenda a elas no texto, ainda aparece a frase “Deus foi bondoso com as parteiras;” no final.
Fica claro aqui que não foram recompensadas por terem mentido, mas porque optaram por um valor mais elevado, o de preservar a vida dos bebês israelitas e “... porque tinham temido a Deus e se tinham recusado a obedecer ao decreto sanguinário.” (Davidson, p. 121). Por outro lado, não há como ignorar o fato de que diante de um dilema ético, a mentira foi a opção escolhida.



ii.            Raabe e os espias – Josué 2.
Raabe mentiu ao povo de Jerico ao dizer que os espias hebreus haviam ido embora, quando na verdade ela os escondeu. Não só foi recompensada e salva, como também foi recebida como membro do povo israelita juntamente com sua família e mais, acabou privilegiada em ser parte da genealogia do próprio Cristo.  Novamente a mentira aqui não foi premiada, mas para que Raabe pudesse realizar uma ação louvável por causa do seu temor à Deus, foi obrigada a distorcer e ocultar a verdade. Mais uma vez um dilema ético, e novamente a opção pelo valor mais elevado é destacado nas Escrituras.

iii.           Davi e Jonatas – 1 Samuel 20.
Para saber se estava seguro ou se Saul ainda intentava mata-lo, Davi e Jonatas tramam um plano que consistia em mentir a Saul. E é o que Jonatas faz: mente ao seu pai e por causa disso verifica que Davi corria mesmo risco de vida. Por causa da mentira de Jonatas, Davi foge e salva a sua vida. Note que no capítulo seguinte, Davi está novamente às voltas com a mentira, agora para poder saciar a fome ao comer dos pães consagrados que o sacerdote Aimeleque lhe dá e mais adiante, finge-se de louco para os filisteus para salvar a própria vida. Se não disséssemos de que se trata do Rei Davi, muitos de nós estaríamos prontos para qualifica-lo como um mentiroso e não como um homem segundo o coração de Deus (1 Sm 13.14; At 13.22).

A Bíblia como palavra viva, deixa claro que a mentira é muito mais do que o oposto de falar a verdade. O valor bíblico é ser verdadeiro e viver sob o valor do relacionamento genuíno com Deus e com os homens, como explica Rega:

“Não basta decidir como cristão; é preciso primeiro ter um caráter cristão, um caráter transformado pelo Evangelho para que as decisões sejam cristãs. Jesus afirma: “pelos seus frutos os conhecereis”, mas depois ele ensina que “toda árvore boa produz bons frutos (...) uma árvore boa não pode dar maus frutos”.” (Mateus 7.15ss). (Rega, p. 144)

Esses frutos muitas vezes se manifestam nas decisões que tomamos diante desses dilemas éticos cotidianos, e a Bíblia como um documento em que Deus se apresenta através de suas manifestações no dia-a-dia do homem na história, é fiel em relatar tais dilemas e a reação divina diante das opções que fazemos para soluciona-los.
  


4.   Os relacionamentos e o uso da mentira na cultura brasileira


Fica claro na Bíblia, que a Mentira é a distorção ou ocultação da verdade com o objetivo de prejudicar alguém e que por isso, impede que reflitamos o caráter divino. Sendo então um problema mais do que moral, precisamos entender como isso acontece em nossa cultura relacional. Ballone analisa o uso da mentira em nosso dia a dia da seguinte forma:

 “Diante dessa frequência fisiologicamente humana há, naturalmente, uma tendência em banalizar a mentira, ou inocentemente classificar nossa mentirazinha cotidiana como sendo do tipo positiva, aquela que além de não prejudicar pode até ajudar pessoas (...o senhor me parece mais saudável hoje do que ontem... conheci seu filho, um jovem magnífico...), ou mentira negativa, aquela que prejudica”. Ballone.

As decisões éticas do brasileiro parecem estar interligadas à sua necessidade de se relacionar e de manter saudável tais relacionamentos. Rega explica que:

“A ação interpessoal é o elo da corrente cultural brasileira. As relações pessoais passam a ter mais peso do que as leis. Da Matta curiosamente ilustra isto afirmando que entre a lei impessoal que diz “não pode” e o amigo do peito que diz “eu quero”, o brasileiro fica com o amigo do peito e dá um jeito na lei”. (Rega, p. 34)

Também citando Da Matta, Rega nos lembra de que na cultura brasileira isso pode ser “...um modo simpático de relacionar o impessoal com o pessoal, um modo pacífico e até mesmo legítimo de resolver diversos problemas...” (Rega, p. 71). Neste caso, dizer que “está bem” para não incomodar, ou dizer para a esposa que “o jantar estava ótimo” para preservar a autoestima dela elevada, faz parte da cultura relacional do brasileiro. Quantas vezes, quando trabalhava no interior, nas minhas visitas evangelísticas, eu tive que “saborear” um cafezinho apesar de detestar café, pois sabia que para muitos ali, recusar um cafezinho é uma atitude complicada. A pergunta é: estava sendo falso aceitando o café ou verdadeiro em investir no relacionamento respeitando a cultura? Volto a citar Bonhoeffer que diz:

“Quanto mais variadas forem as circunstâncias de vida duma pessoa, tanto maior será a responsabilidade, como também a dificuldade, de “falar a verdade”.” (Bonhoeffer, p. 202).

Outro fator importante é o histórico de luta pela sobrevivência, que acabou por imprimir valores na cosmovisão do brasileiro. Sobreviver e suprir as necessidades da família foi e ainda é, sem dúvida, a norma superior. Isso, é claro, não justifica a “malandragem” mas explica muito do nosso comportamento como explica Rega:

“O brasileiro, não sendo uma estátua parada no tempo e no espaço diante do rolo compressor estrutural do cotidiano, luta desesperadamente pelo seu aqui e agora”.  (Rega, p. 124).

Fica evidente que, na cosmovisão brasileira, o relacionamento é muito mais importante que atender a normas rígidas de conduta. Por isso, uma postura legalista ou afasta do Evangelho ou do relacionamento e ambas as alternativas não são compatíveis com o ensinamento cristão. É preciso então, ir além da regra e interpretar a Palavra como letra viva.


Conclusões e alternativas práticas para a igreja e para o indivíduo cristão.


Sem pretensões de criar algo novo e revolucionário (mesmo porque quando se trata das Escrituras Sagradas tal proposta é no mínimo estranha), tomo de empréstimo as orientações de Lowell Bailey sobre o assunto:
i.     Devemos estar vestidos com o “cinto da verdade” (Ef 6.14) em nossos relacionamentos pessoais, ou seja, não devemos permitir que uma vida mentirosa, seja munição para o diabo contra nós. Quem se esconde atrás de mentiras estará desprotegido;
ii.    No Corpo de Cristo, os relacionamentos precisam ser verdadeiros, pois implica em confiabilidade mútua. Seu irmão precisa saber que pode confiar em você, que quando você diz: “eu te amo meu irmão”, isso é verdadeiro nas suas ações práticas, pois precisa ir além do discurso;
iii.   O destaque na Bíblia não fica somente no mandamento negativo (não mentir), mas principalmente no positivo (diga a verdade). No texto de Efésios 4.25,29 encontramos a responsabilidade de fazê-lo com o objetivo de edificar o corpo. Isso implica também, além do que é dito, em como é dito e com que propósito. Dizer a verdade para machucar e prejudicar o relacionamento está mais para “mentir que amo o meu irmão”. Falar a verdade também aponta para a verdade da Palavra de Deus, que deve permear tudo o que dizemos;
iv.   Finalmente, nosso testemunho diante do mundo deve ser cheio de verdade. Mostrar como somos “santos e perfeitos” e por isso, melhores que os pagãos, não têm nada de autêntico. Quando mostro quem eu sou de verdade, Deus tem a oportunidade em nós de mostrar ao mundo o seu poder transformador.
Uma ultima coisa a dizer sobre a mentira: cuidado com julgamentos. Não coloquemos sobre os outros um fardo que nem Deus coloca e que também não
conseguiremos carregar.



BIBLIOGRAFIA


ü    Bonhoeffer, D. “Ética”. 6ª ed. São Leopoldo: Sinodal, 2002.
ü    Rega, L. S. “Dando um jeito no jeitinho – como ser ético sem deixar de ser brasileiro?”. São Paulo: Mundo Cristão, 2000.
ü    Vidal, M. “Ética Teológica”. Petrópolis: Ed. Vozes, 1999.
ü  Bailey, L. “25 segredos para derrotar a crise da comunhão”. 2ª ed. Santa Bárbara d’Oeste, SP: SOCEP Editora Ltda, 2004.
ü    Geisler, N. L. “Ética cristã – Alternativas e questões contemporâneas.”  São Paulo: Vida Nova, 1988.
ü    Stanley J Grenz, Jay T. Smith. “Dicionário de Ética”. São Paulo: Editora Vida, 2005.
ü Ballone GJ - Sobre a Mentira - in. PsiqWeb, Internet, disponível em www.psiqweb.med.br, 2006.
ü    Davidson, F., Ed.  -  “O Novo Comentário da Bíblia”. São Paulo: Ed. Vida Nova, 1963.
ü    Foukes, F.  -  “Efésios: Introdução e Comentário”. São Paulo: Ed. Vida nova, 1986.
ü    KEENER, Craig S. Comentário Bíblico Atos: Novo Testamento. Belo Horizonte: Editora Atos, 2004.
ü    BRUCE, F.F., Org. Comentário Bíblico NVI: Antigo e Novo Testamento. São Paulo: Editora Vida, 2008.
ü    Bíblia de Estudo Nova Tradução na Linguagem de Hoje - Sociedade Bíblica do Brasil. (2005; 2005).



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